terça-feira, 27 de agosto de 2013

Fisioterapeuta contrata autista e tiro sai pela culatra

Edivânia Rodrigues Moreira é uma fisioterapeuta de mão cheia, se me permitem o trocadilho. Além de prestar seus serviços em uma entidade hospitalar de renome, mantém uma carteira de dezenas de clientes, aos quais atende domiciliarmente. É uma profissional competente, muito querida de seus colegas no hospital e praticamente endeusada pelos seus clientes particulares.

Mas Vânia – como prefere ser chamada – não é muito afeita às lides matemáticas. Fato é que sempre encontrou dificuldades em tarefas corriqueiras como, por exemplo, decidir que produto comprar, entre dois ou mais de mesma qualidade, mas com preços diferentes. Cada marca apresenta seus produtos em embalagens de tamanhos (quantidades) diferentes.

De uns tempos para cá, a vida de Vânia (nesse particular) foi simplificada, com a introdução de legislação tornando obrigatória a apresentação do preço unitário, como, por exemplo, a indicação do preço de um quilo em uma embalagem de azeitona que não contém um quilo.

Mas, como a legislação ainda se encontra em fase de implantação, alguns produtos, como, por exemplo, o papel higiênico, ainda não trazem essa informação. Vânia, em um esforço para relembrar o que aprendeu no Ensino Fundamental, chegou à conclusão de que poderia comparar os preços se dividisse o preço de um rolo pelo tamanho em metros. Ocorre que os diversos fabricantes apresentam o produto em embalagens de quatro, seis, oito, doze e até vinte rolos por pacote. Vania chegou a aperfeiçoar sua fórmula, entendendo que devia dividir o preço total pelo número de rolos, e depois dividir pelo número de metros de um rolo. Mas aí alguém botou água na fervura, dizendo para ela que alguns pacotes têm folha dupla e outros não, e que isso influenciava no PUI (preço unitário final).

Vânia pirou.

Mas um dia, assistindo uma reportagem no Globo Repórter sobre autismo, ela encontrou a solução para seu problema. A reportagem esclarecia que os autistas geralmente desenvolvem uma aptidão absurda para um determinado talento. Uma das crianças mostradas conseguia fazer cálculos complexos de forma instantânea, sem uso de máquinas e nem mesmo lápis e papel.

Depois de muito procurar - visitando instituições como ABBR, Sociedade Pestalozzi e Instituto Oscar Clarke -, Vânia conseguiu fazer contato com uma determinada família e fez um acordo segundo o qual o menino a ajudaria a escolher o produto mais barato, enquanto a visita ao supermercado funcionaria como um passeio para o garoto, o que era uma recomendação médica para facilitar a sociabilização do petiz.

Durante algum tempo a coisa funcionou às mil maravilhas. Vânia apontava para as pilhas de papel higiênico, perguntava a Arthur (o menino autista) qual a mais barata, e ele imediatamente apontava para uma delas. Até que Edileusa, irmã de Vânia, e que prefere ser chamada de Neusa, veio dos Estados Unidos em férias. Neusa tinha mestrado em Matemática, e na primeira vez em que foi ao supermercado com Vânia e Arthur, ficou boquiaberta. Quando Arthur apontou para uma determinada pilha, Neusa tentou fazer sinais para Vânia pelas costas dele, dizendo que ele estava errado.

Quando chegaram a casa e Vânia pôs Arthur para dormir, Neusa chamou-a num canto e, falando baixinho, explicou o que se passava. O garoto tinha errado. “Impossível”, garantiu Vânia, “ele é um autista e autistas não erram nessas coisas”. Neusa abriu seu laptop, acionou um aplicativo financeiro e provou para Vânia o que estava afirmando.

Vânia entrou em desespero. No dia seguinte procurou a família de Arthur e pediu explicações. O pai de Arthur, que já tinha lido alguns livros na tentativa de entender melhor a doença do filho, matou a charada. “Geralmente”, disse ele, “autistas têm fixação por uma determinada cor, e é possível que Arthur esteja escolhendo as mercadorias pela cor e não efetuando os cálculos”.

Vânia ficou desconsolada, e até pensou em entrar em um curso de Matemática Financeira, mas isso não será necessário. Semana que vem a legislação que obriga a indicação do preço unitário atinge seu prazo final, e todas as mercadorias passarão a conter o valor unitário, seja em quilos, metros ou a unidade em que cada produto se apresentar.

[Nota do autor: O texto acima parece não se enquadrar no objetivo deste blog. Mas literatura e língua portuguesa têm muito a ver. E tenho a petulância de considerar esse pequeno conto urbano como literatura.]

Devanir Nunes
ultima-flor-do-lacio.blogspot.com

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